Segundo Chakian, essa narrativa se perpetuou ao menos até a Revolução Francesa, no século 18, quando as mulheres começaram, muito inicialmente, a serem vistas como “sujeitos” para o Direito.
“Essas concepções sobre as mulheres que vão sedimentando valores profundamente discriminatórios sobre nós e são esses valores que originam a produção de um direito igualmente discriminatório. Olhando todos os documentos, o que eu diria primeiro, é pra gente pensar que até a Revolução Francesa, por exemplo as mulheres sequer eram pensadas como sujeitos de direito”, completa.
Em sua criação, a legislação brasileira encampou a ideia da doutrina Cristã de que era preciso controlar os instintos femininos. Silvia Chakian lembra que as primeiras fundamentações criminológicas da nossa história, na chamada “era das bruxas”, durante a Idade Média, foram construídas para se controlar mulheres que estavam começando a adquirir emancipação social, econômica, política e sexual.
“As leis, os manuais dos indivíduos que eram diplomas jurídicos da época a relação que esses diplomas vão dizer que a bruxaria era uma prática da natureza feminina, que as mulheres seriam mais inclinadas à bruxaria porque o demônio preferiria se dirigir a elas porque elas tinham uma fraqueza de espírito”, diz Silvia.
Disso, decorrem quatro séculos de perseguições às mulheres, diz a promotora, com literatura médica, por exemplo, com objetivo de justificar biologicamente uma fraqueza intelectual das mulheres.
A promotora Fabiana Dal’Mas lembra ainda que nos dias de hoje, a bruxaria é associada às religiões de matriz africana e ainda mais mal vista quando exercida por uma mulher.
“Aí você tem um aspecto interseccional que é a questão da liberdade religiosa e do preconceito em relação a essa religião, principalmente quando é praticado por uma mulher. Então essa questão da bruxaria, do que era antigamente, até hoje ainda não é aceito com a devida liberdade religiosa”, diz.
Traição
Promotora de Justiça do MP-SP, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, e presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica, Fabiana Dal’Mas, afirma que uma conexão direta com o passado é o conceito de “legítima defesa da honra” usado em casos de feminicídios após traições.
“Quando a gente lembra que, naquela época, a legislação só previa o adultério feminino, isso também ainda se vê muito muito presente nos dias de hoje desde essa época antiga de 1820. Porque até hoje ainda se argumenta, por exemplo, a legítima defesa da honra para praticar um feminicídio”, explica Dal’Mas.
“O Supremo recentemente disse que essa tese não é constitucional, ela não pode ser aceita, mas por que que o Supremo teve que filmar uma posição nesse sentido? Porque em diversos tribunais do júri espalhados pelo Brasil inteiro essa tese ainda era ainda é utilizada para justificar o feminicídio”, afirma a promotora.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a tese da legítima defesa da honra não pode ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio só ocorreu em março de 2021.
Segundo Chakian, ainda que a legislação não determine mais que o adultério é um comportamento apenas feminino, o julgamento da sociedade por meio da análise de reputação da mulher ainda tem traços do passado.
“Apesar da gente não ter mais um direito dizendo que adultério, é crime esse comportamento de traição ainda é utilizado na forma dos estereótipos de gênero na análise de reputação da mulher, até nos crimes feminicídio. Então quando ela é morta essa análise de traição ou não vai se levantado da forma mais perversa possível, e pode ainda embasar um argumento muito próximo da legítima defesa da honra”, avalia Chakian.
“E aí você tem uma dupla moral: enquanto para vários homens a questão da traição, nunca foi muito cobrada. Então, um homem sair com várias, ele é bonito, ele é machão, ele é inteligente, ele é forte, ele é bacana. A traição da mulher, ela já é vista como uma mulher que não tem princípios, que não tem moral, e por isso que a legítima defesa da honra é justamente a honra desse homem ferida e ele teria o direito de fazer o que ele quisesse, inclusive tirar a vida da mulher”, completa Dal’Mas.
Chakian conta que o termo “deskit” usado até pouco tempo atrás significa que a as mulheres desquitadas não estavam “kits” com a sociedade, estavam em débito.
“Afinal de contas o casamento era insolúvel para a vida inteira, né? Então essa ideia de de fracasso mesmo um pouquinho as mulheres disseram não se dizia além divorciada a mulher tendo que assumir o sobrenome do marido. Obrigatoriamente sem a contradição contra a partida para o homem. Isso mudou recentemente hoje o homem a mulher pode ou não assumir o sobrenome do marido e existe a contrapartida o homem pode”, diz.
A promotora lembra ainda que o homem podia anular o casamento ao constatar que uma mulher que se declarou virgem, na verdade, há havia sido deflorada.
“O Código Penal também é cheio dessas passagens as mulheres divididas entre mulher honesta mulher não honesta isso é um termo que permaneceu no nosso país até 2005, quer dizer muito pouco tempo atrás. Então, nos crimes sexuais analisava que honestidade da mulher para avaliar a casa de estupro, então, será que ela teve uma vida promíscua se ela bebia, se ela trocava de parceiro, se ela não trocar de parceiro a ideia de que o marido não pratica estupro contra mulher,”, questiona.