Cristiano Gomes diz que segue sendo ‘envenenado’ todos os dias, que ainda não está curado, e pede responsabilização dos donos da cervejaria de BH. Ele ainda precisa fazer diversos tratamentos, pagos pela empresa. Não há data para julgamento da ação criminal.
Há um ano, Flávia Shayer e Cristiano Gomes já se preparavam para o desafio de um transplante de rim. O procedimento foi necessário após a intoxicação por dietilenoglicol, quando Cristiano bebeu a cerveja Belorizontina, da Backer. Em agosto de 2020, exames mostraram que o rim da Flávia era compatível com o marido.
O dietilenoglicol, substância que contaminou a cerveja, provocou dez mortes, e deixou sequelas graves em outras 16 pessoas, segundo a denúncia do Ministério Público. O corpo de Cristiano chegou a ficar quase totalmente paralisado – até hoje ele não consegue sorrir. Ele ficou três meses internado e, após receber alta, precisou fazer diálise peritoneal por dez horas diárias, e entrar na lista de espera para receber a doação, que aconteceu no fim de setembro.
“Foi uma emoção saber que podia dar um pedaço de mim para ele, mas não é algo simples. Durante a cirurgia do transplante de rim, o Cris pegou uma infecção e ficou 18 dias internado. Ao receber alta, ficou na casa da mãe dele, que adaptamos para ter mais conforto. Porém, após 20 dias, ele testou positivo para o citomegalovírus, da família das herpes, e ficou grave, corremos o risco de perder o transplante”, lembra Flávia.
Além do medo da recuperação após a cirurgia, a família também tinha receio de que ele pegasse coronavírus. O período de tratamento em meio a uma pandemia trouxe uma apreensão maior.
“Eram tantas incertezas, toda semana fazendo exames, testes. Tinha medo do resultado destes exames. Sem falar dos medicamentos, que têm efeito colateral. Como sou pequena e ele alto, meu rim funciona 40% nele, mas não precisa de hemodiálise, o que já é uma vitória”, diz Flávia.
Atualmente, Cristiano segue o tratamento, que, por uma decisão da Justiça, é pago pela Backer. Faz fisioterapia, cranioacupuntura, estimulação magnética transcraniana, fonoaudiologia, tratamento neurológico por causa da paralisia facial, além de estímulos nas pontas dos dedos da mão e em todo o pé.
“É uma luta contra o tempo. Fomos informados pelo médico que tenho até dois anos após a contaminação para recuperar a parte neurológica, e isso termina em dezembro”, diz Cristiano.
Flávia dedica seu tempo ao marido e é ela quem procura novos tratamentos e médicos.
“Eu não saio do lado dele. É uma parceria de corpo. Uma missão de ajuda, de amor, de doação. Eu vim para o mundo com esse propósito”, diz Flávia.
Cristiano confia nas escolhas da mulher e cumpre a rotina de atividades, que exigem, além do esforço, paciência.
“É um processo muito demorado. No começo, como é novidade, é intenso. Agora tenho feito tratamento cotidiano. Dia a dia de atividades físicas. A Flávia me ajuda demais e sei que a melhora acontece devagar”, diz Cristiano.
Sem data para julgamento
O inquérito policial foi concluído em junho do ano passado, com 11 pessoas indiciadas. De acordo com o delegado Flávio Grossi, foram 4 mil páginas. Em setembro, o Ministério Público apresentou denúncia contra as mesmas pessoas, que já foi recebida pela Justiça.
Segundo a assessoria de imprensa do Fórum Lafayette, em Belo Horizonte, o processo está em tramitação, ainda sem data para que o julgamento aconteça.
“A gente fica aguardando um parecer da Justiça. Queremos e precisamos da indenização. A parte criminal não tem reflexo direto nas vítimas, mas é necessária. Os donos não foram criminalizados. Em relação a isso, estou decepcionado. Causa estranheza e sensação e impunidade”, diz Cristiano.
Ele compara o caso Backer a outros crimes que poderiam ter sido evitados.
“O problema dessa doença é que ela continua presente. Não estamos curados. Vivo sendo envenenado todos os dias. Psicologicamente, é difícil. Um processo diário. É a minha vida. Não é diferente de outros crimes, como em Mariana e em Brumadinho. Os culpados devem ser responsabilizados”.
Enquanto a justiça não é feita, é na mulher e na filha que ele encontra a certeza de que tudo vai ficar bem.
“Flavia é especial. Pessoa que está junto de mim o tempo todo. Estamos juntos há 30 anos. É quem eu amo. Temos uma filha. Sou feliz com elas. Esse amor e respeito é um antídoto conta o envenenamento. Não tem veneno que suporta esse antídoto”.
Relembre o caso Backer
A contaminação nas cervejas da Backer veio
à tona em janeiro de 2020, quando a Polícia Civil começou a investigar a internação de vários consumidores após tomarem a cerveja Belorizontina, da Backer, com sintomas de intoxicação. Eles desenvolveram a síndrome nefroneural, que chegou a matar dez pessoas e deixar outras com problemas nos rins e sintomas como cegueira e paralisação facial, ainda em recuperação.
A Polícia Civil concluiu o inquérito indiciando 11 pessoas ligadas à Backer. Entre os crimes apontados pela polícia estavam lesão corporal, contaminação de produto alimentício e homicídio.
Segundo o delegado Flávio Grossi, foi possível comprovar a existência de um vazamento no tanque de cerveja. O inquérito, que chegou a considerar 42 vítimas, foi concluído com 29 vítimas criminais, segundo a Polícia Civil. Entre elas, dez morreram.
Fonte: G1.